terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Carta 3: Arthur Le Bon


Imperador, MA. Em 28 de fevereiro de 2012.


Querido amigo Lancelot Chevalier:

Paz seja contigo!

É sempre grato escrever-te, pois sinto que me entendes.

Recebi tua mui elaborada carta de 05 de fevereiro e tê-la-ia respondido antes não fosse esta pausa incômoda que fazemos na rotina do ano por causa desse festival de impiedade que em nossa terra cobra tanto valor aos olhos da gente.  Com efeito não é de sempre que o Carnaval me desgosta, mas eu diria que de há muito, felizmente.

A parte boa desses dias foi que fui a um Retiro Espiritual com alguns amigos, não porque as festividades me tentassem – não tentam – mas porque é uma das raras ocasiões no ano em que se podem ver reunidos num mesmo lugar nossos irmãos de toda a região, em geral gente tão diferente entre si em suas exterioridades, que espantaria aos de percepção aguda alcançar como são semelhantes em alguma dimensão mais íntima.

Foi uma benção, Chevalier! O estar entre os de minha fé lembrou-me de coisas que eu havia muito me esquecera, como da simplicidade de vida que eu outrora cultivei tão melhor do que agora. Tudo foi como se num refrigério súbito meu espírito retrocedesse a outro tempo, a outra época, em que eu era outra pessoa e tinha outras esperanças – talvez até mais nobres que as de agora.

Nestes dias eu posso te dizer também que se estreitaram ainda mais meus laços com o Magno. Quando de tua visita ao Maranhão deves ter notado como me é caro aquele amigo que tem acesso a minhas coisas e até faz uso de meu nome, mas o que não sabes é que esta situação é recente, pois havia mais de um ano e meio que andávamos rompidos por causa de uma miudeza que me dá até vergonha mencionar aqui. Ali, vi-o prestativo, solícito para com os mais fracos, humilde e isso me encheu de orgulho e de certa ternura. Comove-me quando meus ditos aprendizes aprendem a cuidar uns dos outros, pois isso sempre me faz sentir que alguma coisa está dando certo em minha obra de educador.

Magno, como outros, reflete-me, como eu próprio reflito alguém que refletiu outrem antes dele, e tudo é como nas ondas crescentes despertadas pela queda de uma pedrinha na água tranquila. O bem que hoje habita nele, é herança de alguém em meu passado e isso para mim é um mistério maravilhoso demais para nele não me demorar. Adiante voltaremos a isso.

Em tua carta falas de tua admiração pelo magistério. Há muito mesmo o que admirar nessa carreira que tantos escolhem, mas para a qual tão poucos foram chamados. Espanta-me perceber que um dia entrei em sala de aula sem escolher e que daquele dia já se vão mais de quinze anos, com munição para contar histórias de trevas e luz pelo resto de minha vida. Vivi tanta coisa até aqui... Tenho tido uma vida fascinante, sabias?

Não conto as vezes em que alguém associou minha experiência docente a algum plano misterioso de Deus. Assim, acabo sendo um coadjuvante importante em muitas vidas que tem sido tocadas mais por providências que por propósito meu.  Não é de admirar-se, portanto, que o magistério se tenha convertido em mim esta paixão tranquila, tão paradoxal quanto identificadora.

Às vezes, porém, os interesses do magistério se chocam com os de outra paixão de minha alma: Escrever. A propósito, é bastante convincente essa coisa tua de ‘ou-palavra-ou-sintoma’, pois o sentimento que nisso traduzes é-me assaz familiar.

Quando escrevo vibra em mim o parentesco com Deus.  Sinto uma liberdade semelhante à que me comove quando em sonhos eu voo.  Quando escrevo ficção então, sinto-me como um deus também, como poder de criar e de destruir, de salvar e de desistir – embora nem sempre meus personagens me obedeçam, posto que alguns teimem em tornar-se o que não foram concebidos para ser... Mas isso é outra história.  Um dia hei de contar-te sobre minha relação com os personagens que invento e que por algo em mim vivem.

Mas e tu, amigo Lancelote?  Como vão teus estudos? Que planos bonitos tens para tua carreira e para a vida que se estenderá a partir dela?  É-me curiosa tua escolha, pois sempre que em minha mente se encontram o frescor de tua juventude e a leveza de tua personalidade com a gravidade da carreira médica, eu me lembro da carta que Olívia escreveu a Eugênio, no ‘Olhai os Lírios do Campo’, de Érico Veríssimo.  Oro para que te encontres a salvo da vaidade, meu amigo... Para que não te deixes iludir e nem percas essa graça presente em teu ar de agora.

Termino aqui com saudades.  Quisera que estivesses mais perto e que, além desta produtiva correspondência que mantemos, tivéssemos de quando em quando a oportunidade de rir e confraternizar com outros amigos como o Magno, o Charles e o Felipe Ventura.  Todos vocês fazem-me imensa falta!
Cuida-te, meu irmão!


O abraço de sempre,
Arthur Le Bon.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Carta 2: Lancelot Chevalier



Belo Horizonte, MG. Em 05 de fevereiro de 2012.

Prezado Arthur Le Bon:

Saúdo-o com alegria!

No mais completo léxico imagino que faltariam palavras para dar início a essa carta, deixo então que a falta delas fale um pouco por mim! Metalinguagens à parte, sinto-me como um idoso mergulhado em uma retrospectiva pueril. Há muito deixei de lado o hábito de me corresponder através de cartas, e vejo a oportunidade de retomá-lo como uma chance de descongelar-me da seca e fria hibernação comodista na qual a humanidade vive nos dias de hoje.

Admira-me em uma pessoa o prazer no ato de ensinar, do que se deduz meu apreço por uma “raça” em particular: Os professores. Em um país carente de educação e amor, são eles os patronos que tomam o frontda guerra travada contra a iniquidade. Eles não escolhem seus recrutas, mas transformam os que recebem em verdadeiros super-soldados, preparando-os para as piores batalhas: as contra eles mesmos. Os esforços desses generais, embora sobre-humanos, não são garantia de que todos de seu pelotão aceitem as mudanças propostas, mas de que sempre carregarão a semente do amor enterrada caprichosamente no âmago de suas essências.

Sou filho de um casal de professores: uma atuante e um em potencial! Ambos plantaram sementes no meu coração e mente, das quais já começaram a brotar plantas novas que esboçam suas primeiras flores, mas os muitos outros professores que tive na vida e que definitivamente amavam o que faziam, deixaram também os seus germens no jardim da minha vida. Confesso que nem todos carrego hoje: “parte caiu à beira do caminho; foi pisada, e as aves do céu comeram. Outro caiu no pedregulho; e, tendo nascido, secou, por falta de umidade. Outro caiu entre os espinhos; cresceram com ela os espinhos, e sufocaram-na. Outro, porém, caiu em terra boa; tendo crescido, produziu fruto cem por um.”. Há quem diga o que realmente precisamos ouvir, por isso: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!” – assim disse Jesus aos seus discípulos logo após ter proferido a parábola do bom semeador.

Foi com uma memorável profissional da educação que aprendi a ter amor pelas palavras. Desde então jamais deixei de escrever, e não sobrevivo um dia sem escrever ao menos uma frase. Percebi com o tempo que: o que não vira palavra vira sintoma; que as melhores palavras nascem em nossas mentes, e não em nossas bocas, assim como nem todas elas foram feitas para serem ditas; que com gestos, ou um olhar, podemos extrair o que teoricamente não poderia ser exteriorizado; e, por último, que certas palavras são muito poderosas e podem causar impactos devastadores que arma alguma jamais irá alcançar.

Sinto-me feliz, e digo isso com muita convicção! Achei na vida, em um momento desacreditado e sem sentido, um semeador que planta um futuro diferente do que, por ausência de reflexão, a maioria das pessoas busca.

O dom das palavras está na eloquência de quem as diz. Acredito que muitas ainda não foram ditas com o seu real sentido, tendo assim um enorme poder latente.

A cada dia uma voz, a cada dia uma frase, a cada dia um olhar – outro olhar!

Saudades, meu velho!

Respeitosamente, teu amigo,
Lancelot Chevalier.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Carta 1: Arthur Le Bon




Imperador, MA. Em 05 de fevereiro de 2012.


Meu caro Lancelot Chevalier:


Paz seja contigo!

Esta é a primeira vez que te escrevo e confesso que ainda estou meio inseguro quanto a melhor forma de começar esta correspondência.  Com efeito, desde que meu pai morreu nunca mais logrei êxito em escrever a ninguém, pelo que voltar a fazê-lo é a uma tão desejável quanto assustador - Corrijo-me: uma ou duas cartas sim me foram possíveis de escrever, mas nunca outra com a intenção clara de levar adiante uma correspondência com alguém cuja soma do espírito cristão com o intelecto possante me impressionasse de fato, como é o caso de agora.

É bem sabido por minha gente que duas coisas somente chamam minha atenção nas pessoas: a bondade e a inteligência, Lancelot! Sim, a bondade que ainda sem a inteligência é coisa digna de respeito, e a inteligência que sem a orientação da bondade haverá de ser sempre não mais que um perigo. Quando encontro o casamento destas virtudes no caráter de alguém, não tardo a chamar esse alguém de amigo, o que explica a afinidade instantânea entre nós dois. Almas bivitelinas? Brinco!

Antes que subisses ao Maranhão eu já ouvira muito a teu respeito, Charles Ventura, nosso amigo comum, dissera-me maravilhas e insistira muito na ideia de que haveríamos de ser amigos um dia – Acertou! – A partir disso li teus escritos, acompanhei teu movimento nas redes sociais e alimentei a ideia de que o bom Charles sabia o bastante a respeito de nós dois para fazer uma declaração responsável. Folgo de que a ele tenha dado tanto gosto converter-se nessa ponte fiável entre nós dois, posto que em tua pessoa encontrei este amigo que tão bem me corresponde como pessoa.

Depois da morte de meu pai, não obstante os muitos amigos que enchem minha vida, ficou sempre um espaço vazio dentro de mim à espera de alguém que pudesse acessá-lo. É neste espaço de que te falo, situado em meu foro mais íntimo, que meus conceitos são forjados a partir de minha percepção do mundo. Há muito preciso de alguém capaz, que de boa gana queira entremeter-se em reflexões profundas demais para muitos e ajudar-me a domar ideias e preconceitos a fim de fazer-me a mim mesmo uma pessoa melhor a cada dia.

Pode parecer que estou falando de uma central egoísta, de meu único e exclusivo interesse, mas não é bem assim.  Sendo professor, como sabes que sou, minhas reflexões e conclusões não tem um fim em mim mesmo, mas antes alcançam a outros e neles multiplicam-se.

Antes que comecemos, digo-te que o corresponder-se exige das partes envolvidas duas coisas, pelo menos: A primeira é o amor às palavras que favorece na pessoa o nível de abstração necessário para uma compreensão subjetiva mínima do mundo.  A segunda é a coragem de expor-se, pois, correspondendo-se, o homem dá e recebe, ensina e aprende, muda o outro e a si mesmo.

Creio que por agora temos um bom começo, pelo que aguardo ansioso tua resposta e tudo que desta correspondência ainda é porvir.


Atenciosamente, teu amigo,
Arthur Le Bon.

P.S.: Mando-te juntamente com esta carta a pintura que um amigo daqui do Maranhão fez a partir da foto que fizemos quando de tua visita!